Introdução
O filósofo francês Jean-Paul Sartre não escreveu apenas ensaios, romances e peças de teatro, mas também obras filosóficas. Sua filosofia consiste em colocar o homem como responsável por todos os seus atos. Lançado em um mundo sem justificativa, o indivíduo projeta-se no futuro, escolhe um sentido para sua vida, já que ela não possui um sentido a priori.
O existencialismo de Sartre está inteiramente estruturado no princípio filosófico de que no homem a existência precede a essência, e esta é construída através da liberdade responsável que o homem manifesta ao escolher sua própria vida. Em sua obra, Sartre não deu uma importância excessiva ao problema religioso, pois não estava preocupado em discutir acerca da existência ou não existência de Deus. Nada, nem mesmo Deus, pode justificar o homem ou retirá-lo de sua liberdade total e absoluta, ou ainda salvá-lo de si mesmo. No presente texto, busca-se fazer uma análise da compreensão que Sartre tem acerca do homem.
A existência precede a essência
O conceito “existencialismo” começou a ser usado depois da I Guerra Mundial, com a finalidade de designar um amplo movimento filosófico e teve repercussões em diferentes campos, dentre eles o artístico, o religioso, o ético e o social. É chamado de existencialismo porque seus grandes expoentes interessaram-se fundamentalmente pelo problema da existência humana (MOREIRA, 2003: 337). Conforme o próprio Sartre afirma, o termo existencialismo é empregado de maneira diversa. Alguns pintores, jornalistas e outros grupos foram chamados de existencialistas. A palavra foi associada na época a uma literatura rebelde e solitária. Porém o existencialismo se ocupa dos problemas do homem, chamados “existenciais”, tais como o sentido da vida, da morte, da angústia, da dor etc. A definição mais clara sobre a concepção de homem em Sartre se dá em uma conferência por ele proferida primeiramente em Paris (1946), a qual depois foi repetida privadamente e intitulada O Existencialismo é um humanismo.
Tal conferência foi motivada pela necessidade que Sartre teve em responder as críticas de marxistas e cristãos acerca do existencialismo. Para os marxistas, o existencialismo coloca o homem na condição de desmotivado para agir, desolado, além de acusá-lo de afastar o homem da solidariedade. Acusam-no de um quietismo de desespero e de por fim a uma filosofia contemplativa, pois para Sartre, a mesma nos reconduz a uma filosofia “burguesa”, isto é, ao luxo.
Há dois tipos de existencialismos: o cristão, no qual se destacam Jaspers, Gabriel Marcel e Kierkegaard; e o ateu, representado por Heidegger (embora ele mesmo não o considere) e o próprio Sartre. Tanto uma corrente como a outra comungam de um princípio fundamental: a existência.
Em seu ensaio O Existencialismo é um Humanismo, Sartre usa como exemplo um objeto fabricado para explicar o princípio de que “a existência precede a essência”:
Consideremos um objeto fabricado, como por exemplo, um livro ou um corta- papel: tal objeto fabricado por um artífice que se inspirou de um corta- papel é ao mesmo tempo um objeto que se produz de uma certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida, e não é possível imaginar um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que há de servir tal objeto. Diremos, pois, que, para cada corta-papel, a essência – quer dizer, o conjunto de receita e de características que permitem produzi-lo e defini-lo – precede a existência: e assim a presença, frente a mim, de tal corta-papel está bem determinada. Temos pois uma visão técnica. (SARTRE, 1946: 5)
Com isso, os que acreditam em Deus criador, conceberão Deus como construtor superior, o qual confere existência às coisas, modelando-as segundo um conceito ou ideia pré-formada na mente, como faz o fabricante de corta papéis. Já os ateus, embora não acreditem num criador, tomam outro pressuposto: diferente das coisas, animais, o homem tem a existência precedida pela essência, o que leva Sartre a afirmar que o homem é o único ser que existe antes de sua essência. Com este argumento, Sartre nega a existência de Deus e exalta a existência humana. Sartre afirma que se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, o homem. Primeiro ele existe, se descobre, surge no mundo e só depois irá se definir, ou seja, primeiramente ele é “nada”, só depois será e o será conforme se fizer, de acordo com o que tiver projetado. Com essa ideia, entende-se que o homem é condenado a ser livre.
A essência do homem vem de suas escolhas. Quando ele é “jogado” no mundo não tem essência, ele é não-ser, ou seja, ausência de ser. Paulatinamente ele vai tomando consciência de sua existência e do grande desejo dele ser, mas ser é acabado, realizado. Caso o homem fosse isso ele seria uma coisa, ou seja ser Em-si. E diferente das coisas que são em si, ou seja, já estão prontas, dadas e acabadas como acontece com a pedra, a mesa e tantos outros. No homem acontece diferente, porque no momento em que ele é “jogado” no mundo ele começa a se construir, ou seja, o homem é uma eterna indeterminação.
É importante destacar que o ser Em-si é entendido como qualquer objeto existente no mundo e que possui uma essência definida. Um livro, por exemplo, é um objeto criado para suprir uma necessidade: a leitura. Um ser Em-si não tem potencialidades nem consciência de si ou do mundo. Apenas é. Já o ser Para-si, consciência humana, é um tipo diferente de ser, por possuir conhecimento a seu próprio respeito e a respeito do mundo, e é justamente isto o que o difere dos demais seres. O Para-si não tem uma essência definida.
O homem é antes de qualquer coisa um projeto* que se vive subjetivamente, nada existe anterior a este projeto. Ele será o que ele tiver projetado e não o que ele quiser ser. Para isso, é necessário destacar que há dois tipos de subjetivismo: a escolha do sujeito individual por si só; e o outro a impossibilidade para o homem superar a subjetividade humana (SARTRE, 1946: 6).
Ao afirmar que o homem escolhe a si próprio, entende-se também que o homem escolhe todos os homens. Pois, segundo Sartre, não há nenhum dos atos que ao se criar o homem que ele deseja ser, não se crie também uma imagem do homem conforme ele julga que deva ser. Portanto, o homem nunca pode escolher o mal, pois mesmo o mal sendo escolhido, seria um bem (SARTRE, 1946: 5). A situação do homem existencialista, que não tem um Deus para se apoiar, mas ao contrário, tem a responsabilidade de sozinho se realizar e se construir, é a de alguém que se depara com a angústia, o desespero e o desamparo.
Angústia
O existencialismo chega a afirmar que o homem é angústia, mas não no sentido sombrio e triste da vida humana. Isso significa que, reconhecendo-se livre, ele percebe que não é apenas o que escolheu ser, mas também um legislador, que ao escolher escolhe também toda a humanidade. O indivíduo se angustia porque se vê numa situação em que tem de escolher sua vida, seu destino, sem buscar apoio ou orientação de ninguém (SARTRE, 1946: 8). Com isso, o homem percebe o tamanho de sua responsabilidade e se angustia, pois ao mesmo tempo ele está escolhendo só por si e também por toda a humanidade. Mesmo aqueles que não mostram angústia ou dizem não sofrê-la, experimentam tal condicionamento.
O existencialismo não tem pejo em declarar que o homem é angústia. Significa isso: o homem ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade. (SARTRE, 1946: 7)
O homem não pode deixar de ter na decisão que tomar, uma certa angústia. Segundo Sartre, todos os chefes a conhecem, o que não os impede de agir, mas ao contrário é condição de sua ação. Ao escolher uma possibilidade dentro da pluralidade possível, o homem se dá conta de que ela só tem valor por ter sido escolhida (SARTRE, 1946: 8).
Desamparo
Outra condição em que o homem se encontra é a de desamparo, a qual se dá pelo fato de ele ter que escolher a vida e seu destino, sem nenhum apoio ou orientação de outrem. O homem existencialista se encontra desamparado, pelo fato de não haver mais desculpas para ele. Porque, se é livre, projeto de si mesmo, autor de seu destino, ele é inteiramente responsável por si mesmo (NOGARE, 1977: 146). Percebe-se que o homem existencialista não tem mais em quem colocar suas desculpas, mas se encontra em condição de liberdade, ele está condenado a ser livre. Uma vez lançado no mundo, ele será responsável por tudo que fizer, o que o faz se sentir desamparado.
Sartre retoma Dostoievski, o qual dissera: “se deus não existisse, tudo seria permitido” (apud SARTRE, 1946: 9), e é aí que se encontra o ponto de partida para o existencialismo. Com efeito, tudo é permitido, se Deus não existe, o homem fica abandonado, pois não encontra em si nem fora de si um apoio, não tem a quem se apegar, e se vê obrigado a contar apenas com seus próprios recursos. Nesta condição, o homem não pode contar com nenhuma humanidade, nenhum partido, nenhum companheiro que possa ajudá-lo, mas única e exclusivamente consigo próprio, isto é, com suas próprias forças.
Desespero
A última condição na qual o homem se encontra é a de desespero pelo fato dele se sentir desamparado. Desespero para Sartre é “agir” sem esperança.
Quanto ao desespero, esta expressão tem um papel extremamente simples. Quer ela dizer que nós nos limitamos a contar com o que depende da nossa vontade, ou o conjunto das probabilidades que tornam a nossa ação possível. Quando se deseja uma coisa, há sempre uma série de elementos prováveis (…) a partir do momento que as possibilidades que considero não são rigorosamente determinadas pela minha ação, devo desinteressar-me porque nenhum Deus, nenhum desígnio pode adaptar o mundo e seus possíveis a minha vontade. No fundo quando Descartes dizia: ‘vencemos-nos antes a nós do que ao mundo’, queria significa a mesma coisa agir sem esperança. (SARTRE, 1946: 12)
Segundo Sartre, censuram o existencialismo não pelo seu pessimismo, mas sim pela dureza otimista, com a qual demonstra o homem como realmente ele é, com suas grandezas e pequenez. “A doutrina que vos apresento”, diz Sartre, “é justamente a oposta ao quietismo visto que ela declara: só há realidade na ação; e vai aliás mais longe, visto que acrescenta: o homem não é senão o seu projeto, só existe na medida em que se realiza, nada é portanto, nada mais que o conjunto de seus atos, nada mais do que a sua vida” (SARTRE, 1946: 13).
Conclusão
O homem sartreano é aquele que está por fazer-se, não tem valores que o precedem. Ao mesmo tempo em que Sartre parte do pressuposto de que Deus não existe, o homem é elevado de tal forma que se torna quase um “semideus”, auto-suficiente, capaz de criar sua própria essência.
Sartre procura refletir em sua filosofia o homem que sobreviveu à Segunda Grande Guerra e que tem diante de si a necessidade de pensar a partir de si mesmo. Afirmar que a existência precede a essência, não é simplesmente suprimir Deus. Dizer que a existência precede a essência é colocar o homem como um “nada” lançado no mundo, desprovido de uma definição. O homem surge no mundo e, de início, não é nada; só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Ora, isso implica também o fato de que o homem só se faz num constante projeto, num incessante lançar-se no futuro. Somente assim o homem irá se definir como ser existente e consciente de si mesmo. Lançado no mundo sem perspectivas pré-determinadas, o homem determina sua vida ao longo do tempo e descobre-se como liberdade, ou seja, como escolha de seu próprio ser no mundo. Eis a origem da angústia, do desamparo e do desespero.